Darcy Ribeiro quis unir floresta e escola em um Brasil inclusivo
Nascido há 100 anos, pensador encarnou utopia de país que foi travada pela estupidez Darcy Ribeiro dedicou-se a incontáveis tarefas em sua riquíssima trajetória pessoal e profissional, todas unidas por sua paixão pelo Brasil. Filho da geração modernista de 1922, ele norteou seu projeto inclusivo de país pelo desejo de combinar natureza e cultura, a contribuição indígena e a europeia, fórmula utópica e poderosa hoje sob ataque nas celebrações do centenário do pensador. Quando ocorreu o velório de Glauber Rocha em 1981, no Parque Lage, no Rio de Janeiro, a comoção foi enorme. Morria ali não apenas o cineasta de “Deus e o Diabo na Terra do Sol” (1964) e “Terra em Transe” (1967), mas uma rara força de imaginação crítica sobre o Brasil. Em meio à consternação, um homem aparentando cerca de 60 anos, perto do caixão, começou a falar, com semblante concentrado e sério, olhos apartados, não sei se por causa da tristeza do momento ou pela luminosidade do dia. Pode-se ver a cena no belo documentário de Silvio Tendler. O homem tem no tom de sua voz e no conteúdo das palavras uma firmeza certeira que está à altura do significado do acontecimento para o país. Dizia que Glauber foi capaz de gozos e excessos, porém mais ainda de dor, da nossa dor. Conta que um dia Glauber passou a manhã inteira chorando junto a ele, um choro que todos devíamos chorar: a dor de todos os brasileiros, as crianças com fome, o país que não deu certo, a brutalidade, a estupidez, a mediocridade, a tortura. Diz que os filmes de Glauber são um lamento, um grito, um berro e que esta é a herança por ele deixada: indignação. Ele foi o mais indignado de nós. Indignado com o mundo tal qual é. Isso porque, também mais que nós, Glauber podia ver o mundo que podia ser. O homem que dizia tudo isso era Darcy Ribeiro —e, se o dizia com segurança, é porque as palavras poderiam descrevê-lo também. Darcy foi muitas coisas na sua vida, e ele mesmo confessava isso: antropólogo, etnólogo indigenista, professor, educador, reitor, militante, ministro, senador, romancista. Nada disso, entretanto, dava-lhe, ao olhar no espelho, a imagem difusa de quem não se identifica. O que conferia unidade à variedade era, à semelhança do que enxergara na imagem de Glauber, a paixão e a luta pelo Brasil, que, sem renunciarem a gozos e alegrias, sabem sentir a dor e a tristeza do país, por tudo o que é e poderia ser: “O Brasil como Problema” (1995), como diz o título de um livro seu. Também ele viveu a modernidade do século 20, como observava sobre Glauber, oscilando em um pêndulo entre desespero e esperança. Darcy nasceu em Minas Gerais em outubro de 1922, poucos meses após o evento mais famoso do movimento cultural do modernismo no Brasil, a Semana de 22, em fevereiro daquele ano. Curiosamente, ele encarnou, com tons heroicos ao longo da vida, um ideário modernista que juntava o esforço intelectual teórico a um projeto de nação para o Brasil. Como Mário e Oswald de Andrade, mas também como Glauber, sua vida criativa esteve em estreita relação com sua terra. O projeto de Brasil pensado por Darcy poderia ser resumido —confirmando que pelo nome modernismo pode-se entender tanto apenas o movimento artístico de vanguarda paulista dos anos 1920 quanto um pensamento de que ele é parte e diz respeito, mais amplamente, ao processo de modernização do país— na sucinta fórmula escrita por Oswald de Andrade em seu “Manifesto da Poesia Pau-Brasil” (1924): a floresta e a escola. Cifrava-se, aí, a expectativa de que a formação do Brasil aproximasse a natureza da cultura e combinasse a contribuição indígena nativa da floresta à contribuição europeia urbana da escola. Darcy Ribeiro foi a tentativa veemente de fazer no Brasil esse projeto inclusivo de formação. E o foi não apenas em suas pesquisas e seus livros, mas nas falas e na vida. Sua trajetória teórica foi dedicada a refletir, apaixonadamente, sobre “o povo brasileiro”, título de seu último livro (1995); povo gestado “da confluência, do entrechoque e do caldeamento do invasor português com índios silvícolas e campineiros e com negros africanos, uns e outros aliciados como escravos”. Empenhou-se, de acordo com um evolucionismo de tons utópicos, em construir na materialidade social um país à altura dessa mistura, na combinação de floresta e escola. Viveu quase dez anos junto a aldeias indígenas do Pantanal e da Amazônia, entre 1947 e 1956. Teve contato com os kadiwéus, no sul do Mato Grosso, e os urubu-kaápor, no norte. Sua curiosidade sobre eles era mais que um mero ofício ou trabalho, enraizando-se em uma sensibilidade estética rara. “Eu queria compreender seu veemente desejo de beleza, expresso em cada um dos seus artefatos, feitos com muito mais primor que o necessário para cumprir sua função utilitária”, dizia, porque “a função verdadeira que os índios buscam em seus fazimentos é a beleza”. Romanticamente, Darcy via nos índios mais carinho que briga e mais harmonia que violência, na relação entre si e com a natureza. Nos títulos de seus livros antropológicos dessa época, fica evidente o que chamava sua atenção: “Kadiwéu: Ensaios Etnológicos sobre o Saber, o Azar e a Beleza” (1950), “Culturas e Línguas Indígenas do Brasil” (1957) e “Arte Plumária dos Índios Kaapo” (1957). Há saber, beleza, cultura, língua e arte. Para Darcy, os povos indígenas não eram um objeto de estudo somente, mas um motivo de encantamento e de fascinação. Sua produção não seria despersonalizada ou mercantilizada. Manteria a criatividade. Em uma formulação emblemática, Darcy vê se expressar nas relações sociais entre os índios e deles com a natureza uma “vontade de beleza”. Essa relação dos povos indígenas com a natureza, que Darcy identificou e valorizou desde a década de 1940, ganha ainda mais relevância no século 21, ou seja, quando o modelo civilizatório da modernidade ocidental consuma sua destruição do meio ambiente, ameaçando a vida de toda a humanidade. Sem o alarde que só poderia aparecer depois da conscientização sobre o aquecimento global e o colapso climático, Darcy enaltecia o contato dos índios com