Aqueles que estão desembolsando R$ 40 por quilo de carne de segunda ou até mesmo deixando de consumi-la em 2021, podem pensar que a situação não pode piorar. No entanto, de acordo com os cientistas, há más notícias por vir: a situação pode se agravar ainda mais, apesar do ditado popular brasileiro que afirma que “no fundo do poço tem um alçapão”.
O motivo é o rápido e já perceptível avanço das mudanças climáticas.
Durante dez anos, pesquisadores da USP (Universidade de São Paulo) em Ribeirão Preto simularam os efeitos do aumento de temperatura e menor oferta de água sobre a qualidade do pasto, que serve de alimento para mais de 90% do gado de corte brasileiro.
Eles constataram que a qualidade das folhas será severamente afetada pelo aumento de pelo menos 2°C esperado nas temperaturas nos próximos anos.
Com isso, vai ser mais difícil engordar o gado, ou será preciso complementar a alimentação dos animais “a cocho” — expressão usada pelos pecuaristas para a nutrição do gado em confinamento, geralmente feita com grãos como milho, soja e sorgo — o que tende a reduzir a oferta ou encarecer ainda mais a carne bovina.
E talvez ainda mais grave: o pasto com menos proteína e mais lignina (um componente indigerível pelos animais) pode levar os bois a produzirem ainda mais metano no seu processo digestivo. Com isso, uma atividade que já é considerada atualmente uma “vilã” do clima pode contribuir ainda mais para as mudanças climáticas, num ciclo vicioso.
Em outro processo pernicioso, o aumento de temperaturas deve fazer o gado precisar de ainda mais água para se refrescar, num ambiente onde a oferta do líquido será mais restrita.
Diante desse cenário, o recado dos cientistas é unânime: é preciso atuar já para mitigar as mudanças climáticas, melhorar o uso dos recursos hídricos pela agropecuária e desenvolver novas forrageiras (como são chamadas as plantas usadas na alimentação animal) mais resistentes ao calor e à falta de água.
A boa notícia, diz a Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária), é que o país já tem experiência no assunto, pois produz proteína animal no semiárido, que é uma espécie de “microcosmo” do que será um Brasil futuro mais quente e com menos chuva.
O gado e a grama
“Lá na USP Ribeirão Preto, nós temos uma estrutura montada para simular o clima futuro. Basicamente: o incremento do CO2 [gás carbônico, principal responsável pelo efeito-estufa], o aumento da temperatura e a falta de água”, conta o professor Carlos Alberto Martinez Y Huaman, do departamento de Biologia da USP em Ribeirão Preto, no interior de São Paulo.
“Nosso objetivo principal foi fazer uma simulação de como as pastagens poderiam responder às mudanças climáticas — ao aumento da temperatura em 2°C, ao aumento do CO2 em 50% e à restrição hídrica”, explica o pesquisador. “Escolhemos para começar duas forrageiras brasileiras, uma gramínea e uma leguminosa, que foram cultivadas nesses ambientes modificados.”
E o que os pesquisadores encontraram nesses dez anos de estudos?
“Encontramos o seguinte: o aumento de temperatura e a falta de água são muito prejudiciais para os pastos. Não somente para a produção de biomassa, mas também para a qualidade das folhas, que é a parte da planta que o gado come”, diz Martinez, lembrando que os pastos ocupam no Brasil cerca de 160 milhões de hectares — uma área equivalente ao Irã e maior do que todo o Estado do Amazonas, a maior unidade federativa brasileira em território.
Tanto a produção de carne, como a de leite, dependem do acesso do gado a pastos de boa qualidade e em boa quantidade. “Quando aumenta a temperatura e chove menos, as plantas vão produzir menos folhas e a qualidade da folha também muda: começa a cair o teor de proteína — nós encontramos uma queda entre 20% e 30%.”
“Com menos proteína e mais lignina — um polímero que o gado não consegue digerir —, o aproveitamento do pasto pelo gado cai. Assim, ele ganha menos peso. Para compensar, o gado vai ter que comer mais folha, mais pasto, ou o pecuarista vai ter que dar suplemento alimentar, se não o gado não engorda”, afirma.
“E se aumenta o teor de lignina, pode haver maior emissão de metano, um gás do efeito estufa que tem 20 vezes mais efeito de aquecimento que o CO2. Então pode causar mais problemas para as mudanças climáticas”, alerta o especialista.
Com a mudança climática também se altera a microbiota do solo — microbiota é o nome que se dá aos microrganismos que vivem em um ambiente. “Surgem fungos patogênicos que causam doenças nas plantas, isso é ruim para elas e para a produção pecuária.”
Além da emissão de metano, também podem aumentar as emissões de óxido nitroso, um gás que tem 300 vezes mais efeito de aquecimento que o CO2.
“Quando se altera o ambiente e é aplicado, por exemplo, um adubo nitrogenado no pasto, pode haver uma perda grande de nitrogênio na forma de óxido nitroso. Isso tem impacto nas mudanças climáticas, contribuindo para o aquecimento global”, explica o pesquisador.
Preço da carne e desigualdade social
Entre as soluções para mitigar o problema, Martinez enumera: o uso de plantas mais resistentes à seca, a fixação biológica do nitrogênio (feita através de bactérias colocadas junto com as sementes que fixam o componente químico no solo) e a recuperação de pastos degradados para evitar o avanço do desmatamento.
Ele também defende o incentivo ao método de produção chamado ILPF (integração lavoura-pecuária-floresta), que inclusive ajuda no controle de temperatura na criação dos animais, que podem recorrer à sombra das árvores para se proteger, diminuindo consequentemente a necessidade de consumo de água pelo gado num futuro que será mais quente.
“É preciso que a informação chegue aos produtores, aos tomadores de decisão, para que vejam que o problema já está acontecendo. As mudanças climáticas e os eventos extremos estão ocorrendo dia a dia”, alerta.
“Se não tomarmos medidas para enfrentar essa situação, o preço da carne e do leite vai subir, para compensar o aumento de custo que os pecuaristas terão com a piora da qualidade do pasto. É um problema social, econômico e científico”, conclui.
Ao se vislumbrar esse futuro de preços ainda mais altos, é preciso levar em conta que o consumo de carne é um importante marcador de desigualdade social no Brasil.
Segundo um estudo de pesquisadores do IFMG (Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Minas Gerais), com base em dados da POF do IBGE (Pesquisa de Orçamentos Familiares do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), o consumo médio per capita anual de carne bovina entre 2008 e 2009 era de 17,61 kg para as classes com rendimento acima de R$ 6,2 mil, sendo 11,33 kg de carne de primeira e 6,28 kg de carne de segunda.
Para as classes com renda até R$ 830, o consumo médio por pessoa anual era de 8,88 kg, sendo 6,03 kg de carne de segunda e 2,85 kg de carne de primeira.
Ou seja: um futuro em que as mudanças climáticas torne as carnes ainda mais caras deve aprofundar a desigualdade no acesso às proteínas mais nobres.
“O que estava previsto para acontecer até 2050, 2100, agora se espera que aconteça até 2030, 2040. As estimativas mais pessimistas já falam que podemos chegar em cinco anos a [um aumento de temperatura de] 1,5°C, que é o limite do Acordo de Paris”, alerta Martinez.
“Normalmente, aqui no Brasil, a época de seca durava entre dois e quatro meses. Se a seca dura cinco, seis, oito meses, não há forma de cultivar plantas. Isso cria um cenário bastante pessimista na produção pecuária e agrícola. E temos que ter consciência de que isso é um problema sério de segurança alimentar.”
Água como questão-chave
Gherman Araujo, pesquisador da Embrapa Semiárido, destaca que, com o aumento esperado da temperatura nos próximos anos, os animais podem demandar um consumo de água entre duas e quatro vezes maior para manter a temperatura de seus corpos sob controle.
Segundo ele, o consumo de água pelos animais varia de 2% a 6% do seu peso vivo. Isso significa que um boi de cerca de 500 kg ingere pelo menos 20 litros de água por dia.
“O componente água é o principal dentro do sistema de produção agropecuário e o que mais será afetado [pelas mudanças climáticas]”, destaca Araujo. “Sem água não há possibilidade de se ter qualquer tipo de produção de proteína animal ou vegetal.”
Durante a elaboração do PNHS (Plano Nacional de Segurança Hídrica), a ANA (Agência Nacional de Águas) identificou que os riscos diretos à produção animal por “fragilidades no balanço entre oferta e demanda de água” já alcançam R$ 29,86 bilhões, podendo somar R$ 44,57 bilhões em 2030, conforme informou o coordenador de estudos setoriais da ANA, Thiago Fontenelle, durante simpósio promovido pela Embrapa no ano passado.
“Isso é muito sério e pode afetar todas as cadeias de produção animal, desde suínos, aves, até os ruminantes caprinos, ovinos e bovinos de leite e de corte”, diz o pesquisador. “Até porque esses animais dependem para sua nutrição de grãos e a produção de grãos será afetada — haverá uma competição natural entre a demanda de grãos para consumo humano e para atender o consumo dos animais.”
“É preciso que a zootecnia atue trazendo soluções tecnológicas para mitigar os efeitos da alteração do clima”, defende o especialista da Embrapa. “A região semiárida pode ser uma referência para como se produzir e ser eficiente num ambiente onde haja aumento de temperatura e menor disponibilidade hídrica.”
Segundo Araujo, o semiárido tem a ensinar técnicas diversas de captação e conservação de água; o uso de espécies vegetais altamente eficientes no uso do líquido, como a palma forrageira, um cacto utilizado na alimentação animal; além de animais tolerantes a altas temperaturas e eficientes no consumo de alimentos de baixa qualidade.
“Nós temos muito o que ofertar como alternativas em um ambiente menos favorável em relação a temperatura e precipitação. O semiárido vai ser olhado na busca por soluções para a adaptação de outros biomas. Não tenha dúvida disso.”