setembro 16, 2024

Das pastagens degradadas ao sucesso na produção do mel

A incrível história do produtor que queria recuperar suas pastagens degradadas e acabou por criar um produto que chegou nas gôndolas mais renomadas do País.

Por Renato Villela

Conheci o produtor Carlos Roberto Della Libera, o ‘seo’ Carlos, como era carinhosamente chamado, quando visitei sua propriedade, a Fazenda Paraná, na bela Serra do Roncador, no Mato Grosso, por conta de uma reportagem sobre o pagamento por serviços ambientais. Produtores estavam sendo remunerados por manter de pé seu “excedente florestal”, ou seja, parte da mata nativa que poderia ser legalmente derrubada, pois estava além da quota (percentual) de preservação obrigatória, que varia de acordo com o bioma onde se localiza a fazenda, conforme rege o Código Florestal.

Na pecuária, ‘seo’ Carlos ficou conhecido por seu trabalho com a raça de origem espanhola Rubia Gallega, tendo sido um dos primeiros produtores a utilizar sêmen da raça no Brasil. (O governo espanhol exerce controle direto sobre a Rubia Gallega, criada preferencialmente na Galícia, sua região de origem. Sua difusão para o exterior se limita ao comércio de sêmen).

Entusiasta da raça, viajou até o noroeste da Espanha para conhecer machos reprodutores. Na fazenda, inseminou mais de 10.000 vacas Nelore. Em 2004, tornou-se um dos fornecedores da famosa carne de vitelo “Rubia Gallega” do Pão de Açúcar. O programa foi descontinuado pela rede varejista em 2019, num imbróglio que se estende até hoje na Justiça.

Na Espanha, com a produtora Teia Fava (sua cunhada), para conhecer a raça Rubia Gallega.

Deixa rolar

Tenho por hábito, toda vez que vou a campo produzir uma reportagem, me sentar primeiro com a fonte para entender como funciona o projeto na fazenda e gravar a entrevista, o que hoje é feito principalmente por áudio (os aplicativos de gravação de voz tomaram o espaço da icônica dupla bloquinho&caneta). Registro feito, só depois saio para dar uma volta, conhecer a propriedade, esmiuçar os detalhes e tirar as fotos para ilustrar as páginas da revista. Matéria entregue, costumo apagar as gravações, até para reservar espaço para a próxima reportagem.

Quando cheguei à Fazenda Paraná, de manhã, segui meu ritual. ‘Seo’ Carlos estava à minha espera. Ele havia sido escolhido para a reportagem porque se enquadrava no perfil que pedia a pauta. Além de membro da Liga do Araguaia, era um conservacionista. Havia decidido manter de pé os 4.000 ha de mata que poderia desmatar legalmente, pois excediam os 35% de reserva legal exigidos pelo Código Florestal para o bioma Cerrado, onde está inserida sua propriedade.

‘Seo Carlos’ e a mata preservada: “abelhas pegam o pólen nas flores de Cerrado”.

De bate e pronto, ele me ofereceu um café tão logo sentei-me à mesa do escritório da fazenda. Me sugeriu adoçar com mel, algo que nunca tinha feito, muito menos pensado. Enquanto mexia a pequena colher para dissolver o líquido viscoso na xícara, ‘seo’ Carlos começou a me contar que também havia se tornado um produtor de mel. Eu já sabia, de antemão, que ele criava abelhas (a assessoria da Liga do Araguaia havia me ‘brifado’, como a gente diz no jargão jornalístico). 

O assunto nem de longe era do meu interesse. Na revista tratamos somente de pecuária de corte, mas aprendi com os anos de profissão que conversas assim, preambulares e aleatórias ao tema da entrevista em si, são importantes para “quebrar o gelo”, se me permitem o clichê, entre o entrevistado e a fonte. E o café tinha ficado bom! Deixei rolar. ‘Seo’ Carlos me contou que, preocupado com o estado de degradação das suas pastagens, na primeira metade dos anos 2000, foi procurar ajuda numa das unidades da Embrapa, a qual não me recordo. 

A orientação que recebeu dos pesquisadores foi plantar renques de acácia (Acacia mangium) nas áreas de pastagem degradada. Árvore de porte grande da família das leguminosas, a acácia fixa nitrogênio atmosférico e o converte em formas utilizáveis pela planta, melhorando a fertilidade do solo. A famosa dobradinha (consórcio) gramínea-leguminosa, tão benéfica e tão esquecida. Além do mais, por ser uma espécie originária da Austrália, portanto classificada como exótica (não pertencente à flora nativa), a árvore poderia ser cortada e a madeira, explorada comercialmente.

Árvores de acácia ainda jovens crescendo no meio da pastagem.

Banquete para as abelhas

Quando estas conversas preliminares se estendem, me sinto um tanto aflito. Devo em parte à minha ansiedade (inata e aparentemente incorrigível), mas também pelo fato de que normalmente temos pouco tempo para fazer todo o trabalho e retornar à Redação. Não foi o que aconteceu. Quando dei por mim, estava envolvido por completo na narrativa. Um negócio que começou de forma totalmente despretensiosa, com o plantio de árvores para recuperação de pastagens, e foi parar nas gôndolas de supermercados renomados como o Santa Luiza, em São Paulo, e a rede St. Marche.

Tudo começou quando o produtor chamou um marceneiro da região, o Edivaldo, para envernizar portas e janelas de madeira das instalações da fazenda. Observador, Edivaldo reparou que as abelhas tinham predileção pelas flores da acácia. O conhecimento empírico do marceneiro tem eco na ciência. Basta uma pesquisa rápida na internet para conhecer o potencial apícola da árvore. Espécie melífera da família Mimosaceae, a acácia produz néctar quase o ano todo. Dentre as várias espécies animais que se alimentam de suas flores, estão os insetos sugadores, em especial as abelhas da espécie Apis mellifera

Flores vistosas da acácia (acacia mangium): espécie produz néctar quase o ano todo.

Vendo o banquete de flores para as abelhas, Edivaldo sugeriu que fossem colocadas algumas caixas, que ele mesmo fez, para que as abelhas fincassem morada e fabricassem o mel. Uma, duas, três… Aos poucos o mel começou a ser produzido.

Na medida em que os potes foram se enchendo, ‘seo’ Carlos dava de presente aos amigos. Seus e de dona Rosângela, sua esposa, que tem “um milhão de amigas”, como me confidenciou na entrevista. Com o tempo, os pedidos de novas encomendas cresceram. Primeiro os vizinhos de fazenda, depois os do condomínio em São Paulo, as novas amizades que surgiram nos bancos da Paróquia Nossa Senhora do Brasil, no bairro Jardim América, em São Paulo, que frequentava com a esposa durante as missas de domingo. 

Surge uma oportunidade

Astuto, o produtor logo percebeu que ali existia uma oportunidade. A mente inquieta do engenheiro civil, sempre em busca de inovações, somada ao tino inegável para os negócios, lhe fez considerar a possibilidade de comercializar um produto único, com características bem específicas.

“Pensei: vou fazer uma cadeia. As abelhas coletam o néctar das acácias e voam para pegar o pólen nas flores do Cerrado e fabricar o mel”, me disse ele. Eu, que não entendo nada de abelhas, mas gosto de vinho, aprendi que o mel também tem seu terroir.

Generoso, ‘seo’ Carlos ofereceu uma sociedade a Edivaldo sem custo algum. Além de contratá-lo como funcionário para cuidar das colméias, lhe ofereceu participação nos lucros, sem aporte de capital. Apaixonado por abelhas, o marceneiro dizia que só permanecia no ofício com a madeira porque não sabia como ganhar dinheiro com o mel. O problema é que cada negócio tem seu tempo, e o Edivaldo não teve paciência de esperar (acho que ele é tão ansioso quanto eu). Personagem importante nessa trajetória, o marceneiro sai de cena nessa parte da história. Uma pena. Mas a vida, a gente bem sabe, tem lá seus desencontros…

Dos potes dados de presente a amigos até as gôndolas dos supermercados, o mel percorreu longa caminhada. A primeira experiência de comercialização foi no “restaurante do Adão”. Situado no sugestivo Vale dos Sonhos, no pé da Serra do Roncador, o modesto estabelecimento é reputado pela boa comida. “Vendemos toda a primeira leva”, me contou ‘seo Carlos’. O Adão, vale o registro, é um antigo garimpeiro, remanescente da mítica “Serra Pelada”, aquele  garimpo famoso da década de 1980 na Serra dos Carajás, no sul do Estado do Pará, que gravou no inconsciente coletivo a imagem de um formigueiro humano em busca de ouro.   

Mel orgânico “Casa Roncador” chegou às prateleiras dos supermercados mais renomados do País.

Depoimento ficou gravado

A imagem que guardei do ‘seo’ Carlos é daquele tio que a gente tem (ou teve), e que nos faz sentir bem quando estamos ao lado, mesmo sem dizer nada. Talvez por sua delicadeza e doçura, como o mel que produzia. No finalzinho daquele dia em que estive na fazenda, perto do pôr do sol, ele me levou para o ponto mais alto da propriedade, de onde era possível avistar o horizonte, na profundidade de um vale lindo, rodeado de montanhas. Ali, me despi do papel de repórter e fiz o que não costumo fazer com as minhas fontes: pedi para tirar uma foto ao seu lado. 

‘Seo’ Carlos com o repórter Renato Villela: vista para o horizonte e uma doce lembrança.

A história do hoje batizado mel orgânico “Casa Roncador”, presente em cerca de 200 pontos de comercialização, é das mais surpreendentes e incríveis que já ouvi nas minhas andanças pelas fazendas Brasil afora. Repleta de nuances, numa mistura de acaso e ousadia, ganhos e perdas, sonho e ensinamento. Afinal de contas, por mais que a gente queira, a vida nem sempre é linear. Tem seus contornos, seus caprichos.

“Na vida a gente tem que insistir, tem que perseverar. Se no primeiro ‘não’ você abandonar o projeto, é porque não acredita nele, não está convicto”.

‘Seo’ Carlos foi um exímio contador de casos. Cativante, dominava como poucos a arte de tecer uma narrativa e envolver seu espectador. E o fazia de forma tão natural e espontânea, que me pergunto se tinha ciência da própria destreza para contar histórias. Outras tantas me fugiram da memória. E por falar em memória, se a sua não lhe trair, vai se lembrar que escrevi, em algum ponto desse texto, que tenho o hábito de apagar minhas entrevistas depois que entrego a reportagem. A do ‘seo’ Carlos eu nunca apaguei.

*Este texto é uma homenagem ao produtor Carlos Roberto Della Libera, o ‘seo’ Carlos, que faleceu aos 71 anos no dia 16 de maio de 2024. 

Fonte: Portal DBO/Renato Vilella

CURADORIA: Redação do portal Boi a Pasto

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